domingo, 27 de julho de 2014

O Réu e o Rei

Estou próximo de concluir a leitura de O Réu e o Rei, livro de Paulo César de Araújo publicado esse ano, mas já adianto: é completamente indispensável para fãs e sobretudo estudiosos da nossa música popular brasileira. Simplesmente não consigo parar de lê-lo.

Em suas mais de 500 páginas, o jornalista e professor aborda os bastidores de sua luta judicial com Roberto Carlos, sobre a famigerada biografia não-autorizada do cantor, publicada pela editora Planeta em 2007. O super bem escrito relato faz emergir personagens apresentados sem maniqueísmos, em toda a sua complexidade, episódios surreais típicos do pior aspecto da sociedade brasileira, e uma surpresa que me fez gargalhar em alto e bom som enquanto lia.

A trajetória é contada de maneira cronológica, e inevitavelmente Paulo César se coloca como personagem da trama. Ao iniciar a leitura, acreditei que os trechos de sua infância seriam aborrecidos de se ler, baseado em algumas biografias onde se anseia logo pela chegada dos episódios mais conhecidos. Mas logo percebi que o jornalista não só é meticuloso com os dados de suas pesquisas, mas também tem uma forma de escrita arrebatadora. Aviso: só comece a ler o livro se tiver tempo livre, porque não dá pra parar (esse fim de semana chuvoso tem me ajudado na tarefa).

Não vou ficar falando dos detalhes tão pequenos dessa obra, mas já me adianto para um trecho que é sintomático de um traço lamentável do caráter nacional e da falência de nossas instituições na contemporaneidade. É logo após a audiência de conciliação em que Roberto Carlos consegue a proibição da sua biografia (que até então almejara elogios quase unânimes de fãs, artistas e jornalistas Brasil afora). O juiz, que se revelara tendencioso a favor de Roberto por toda a audiência, espera a definição da sentença para declarar que é músico, enquanto entrega um CD seu ao Rei e pede para tirar fotos com ele. Ali, está representado o fisiologismo com que alguns membros de nossas instituições comprometem todo um aparato que, em tese, deveria ser imparcial e estar a serviço da justiça e dos interesses públicos.

Mas a grande surpresa desse livro é... João Gilberto! Todos os trechos que falam de João são simplesmente fantásticos, inacreditáveis, mágicos até! Me fizeram rir e me emocionar. Eu gastaria mais uns três textos desses para descrever! Me limito a mencionar apenas um deles, quando Paulo César presencia o criador da bossa nova relatar a diferença entre o sapateado de diferentes tradições de dança, e não só explicar teoricamente esse dado, mas exibir na prática e com uma imprevisível elegância, que João domina muito mais do que a arte do canto e do violão.

domingo, 20 de julho de 2014

Já perdi a conta de quantos emails recebi com textos de autorias completamente duvidosas, pastiches que teriam sido supostamente assinados por escritores, poetas e cronistas diversos. As piadas (mesmo aquelas com rudeza de botequim) atribuídas ao Veríssimo; os poemas de sentimentalismo a flor da pele seriam de Clarice ou Caio Fernando Abreu; as crônicas mais contundentes por Arnaldo Jabor, e por aí vai.

Mas não me recordo de ter recebido nenhum desses arremedos literários com a assinatura de Rubem Alves. Fico aqui especulando os motivos. Diferente de autores como Paulo Coelho, Alves era muito bem sucedido ao aliar elegância e simplicidade. Suas frases parecem as pinceladas de pintores experientes, que só depois de uma longa caminhada da alma e da técnica alcançam um traço de encantadora espontaneidade.

Enfim, não vejo como negativo essa história de uma obra literária apresentar ganchos e repetições que facilitem imitadores. Cada estilo é um mundo a parte, e funciona a seu modo. Veríssimo é inimitável, apesar de seu texto jocoso e (falsamente) acessível incitar os falsários a tentar. Rubem Alves talvez tenha sido poupado das clonagens devido à sua sobriedade e sua lucidez, aliadas também ao horizonte de leveza e beleza que mirava sempre.

O educador e filósofo é daquela qualidade de pensador que conseguiu ser acessível sem apelar a estereótipos. Tanto em sua postura de homem público quanto na essência de seus livros e declarações, a porção vaidosa de sua humanidade ficou em segundo plano, privilegiando sua mensagem de validade inexpirável. Rubem Alves flertou com a eternidade ainda em vida, e tornou-se universal para sempre.