Antes de mais nada, devo
contextualizar a questão para o juri. Dizem que o ABC da ficção científica era
composto por Asimov, Bradbury e Clarke. O A e o C já haviam batido as botas e
se tornado lendas. Na noite do dia 05 de junho, o B era ainda a única divindade
viva dentro do gênero. Ainda não era um deus ex-machina.
O mundo acreditava que Bradbury estivesse vivo – era
o que estava escrito em enciclopédias e wikipedias. E estava, ainda. Quanto a
mim, sequer sabia que ele era um deus da FC. Ou melhor, sabia de "ouvir
falar", mas não conhecia sua liturgia literária.
Na noite de 5 de junho, procurei
informações sobre Bradbury no google. Porque? A faísca do interesse foi acesa
por um livro do autor chamado O Zen e a Arte da Escrita. Ao ler trechos
dele, desinteressadamente, me peguei seduzido por seu enlevo. Basicamente, é um
livro sobre as razões da escrita: porque e como fazê-la. O alto nível das
considerações me faziam crer que Bradbury deveria ser, de fato, um autor
instigante. Além de ser o grande ídolo de um dos meus escritores favoritos,
Neil Gaiman. O google, como sempre, me forneceu a ficha corrida do homem, e me
surpreendeu não só que estivesse vivo, aos 91 anos, mas que também continuava
em plena atividade literária. Realmente um deus da FC.
Eis que no dia 6 de junho, cheguei à
rodoviária de Juiz de Fora, e com muito custo consegui achar uma passagem de
ônibus disponível (véspera de feriado). Caminhando rumo à plataforma de
embarque, dei de cara com uma notícia transmitida no telão central,
inacreditável: morre Ray Bradbury.
Como podia ser? Tinha me interessado por ele meio que
"do nada", um dia antes! Fiquei em estado de choque. Seria uma falha
na matrix?
Não sei se tenho culpa nessa história. Em minha
defesa, alego a sincronicidade junguiana, a lei da atração, carma, e outros
fenômenos que parecem ter saído de livros de ficção científica.
Se essa evidência não colar, vou ter que retroceder
ainda mais no tempo. Acho que tudo começou há uns anos, quando ergui perigosos
tótens (quais deles não seriam perigosos?). Depois de uma infância devotada aos
heróis de quadrinhos e a todo tipo de ficção com elementos fantásticos, mágicos
e extraordinários, eis que eu tinha sido picado pelo vírus do realismo. Passei
a gostar de uma literatura mais calcada no cotidiano, de cinema noir, quadrinhos
adultos, e a repudiar coisas que se distanciassem muito disso. Talvez
precisasse gostar de coisas sérias por estar me levando muito a sério, vá
saber.
Com o tempo, esses tótens foram
perdendo seu magnetismo, e me dei conta de que tanto o realismo quanto o
absurdo dentro da ficção são feitos do mesmo barro. São diferentes só enquanto
gênero, mas o caráter ilusório é tal e qual. Ambos só se tornam bem construídos
e verosimilhantes quando o autor consegue amarrar bem sua trama. No fundo, eu
tinha ficado "de pirraça" de muitos autores que poderiam ter tanto a
me dizer.
Reconciliado com alguns ídolos da minha infância,
novamente tratei de ampliar meu leque de leituras, e foi aí que o B do ABC foi
aparecendo aos poucos pra mim. Primeiro quando li um artigo que tratava de
escritores de ficção científica que transcenderam o gênero, munidos de
perspicácia e de genuínos méritos literários. Bradbury era citado com louvor.
Meses depois, ao ler o livro de contos Coisas Frágeis, do britânico Neil
Gaiman, me surpreendi ao vê-lo tecer infindáveis elogios a ele, e se
referindo ao norte-americano como "um mestre da arte". Por fim, eis
que vivenciei o enigmático episódio do dia 05 de junho.
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Julgamento encerrado. Agora é botar o leitor a par do
veredicto. A promotoria entendeu que eu deveria ler Crônicas Marcianas para
me redimir da absurda lacuna que arrastei durante anos. Para poupa-los do meu
depoimento final, basta dizer que concordei com o júri sobre o grande valor da
prosa bradburiana.
No
presente momento, minha pena já se encontra cumprida. A leitura de cada uma das
peças que compõem Crônicas Marcianas me fizeram refletir sobre o delito,
e a constatar o quanto foi equivocado ignorar um escritor de tal calibre.
Apesar dos pesares, percebo que foi
inusitado e mágico ter me encantado pela primeira vez com um texto de Ray
Bradbury talvez no exato momento em que ele se despedia do nosso planeta. E
agora, enquanto ele provavelmente descansa numa sonda espacial ou em um
universo paralelo, continuo a caça de Fahrenheit 451 e outras belezas.
Um comentário:
Pois é Rafa, erguemos tótens quase que diariamente mas é difícil abarcar todo o conhecimento deste vasto mundo! As lista de coisas que devemos fazer/conhecer antes de morrer têm seu mérito de fato! Boa sorte para todos nós rumo ao conhecimento infinito!
Ass: Felipe Cordeiro.Congonhas
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