Foto: Teresa Duarte - Flickr da autora |
Prefiro a definição de Joseph
Campbell, que diz que "nos mitos, encontramos personagens que ressoam
dentro de nós, e usamos os mitos para criar ordem a partir da nossa própria
experiência1". Obras de arte podem criar e recriar mitos, podem
fazê-los ressoar em corpos, mentes, corações e espíritos.
Nessa ótica, os mitos da
mineiridade tem muito a dizer para quem quer apreender tais significados. Mais
que uma bela melodia assobiável, a canção "Paisagem da Janela" é um
veículo de diversos mitos mineiros, e o fato de seu significado ser meio vago
possibilita diversas e amplas leituras. Arriscarei a minha.
"Da janela lateral do
quarto de dormir"
O quarto de dormir é (ou deveria
ser) o espaço onde nos afastamos da correria do mundo. A merecida pausa para
lamber as feridas. Um local de contemplação, de faxina mental, de sossego. Ali,
as contas para pagar, os compromissos sem fim, a correria do trânsito, a
barulheira e o caos urbano; são fenômenos que ficam para trás.
A vida é correr atrás de algo,
ter metas, sonhar e tentar realizar. Mas também é contemplar, apreciar o
esforço, parar pra respirar e observar. Sem o momento de reflexão, qual o
sentido de tanta conquista?
Para muita gente, Minas Gerais
representa isso: seu espaço bucólico, interiorano, rural, seria esse lugar de
repouso, um refúgio no meio das cadeias de montanhas, de onde a gente pensa na
vida em meio ao aroma do alecrim e do fogão de lenha, degustando um copo de
leite fresco, pão de queijo e café passado na hora.
A vida aponta pra frente, como a
seta da flecha. Mas o vento que refresca, vem da janela lateral.
"Vejo uma igreja, um sinal de glória
Vejo um muro branco e um vôo pássaro
Vejo uma grade, um velho sinal"
Vejo um muro branco e um vôo pássaro
Vejo uma grade, um velho sinal"
Igreja, muro, grade, velhos
sinais. Obras forjadas na pedra, por mãos humanas, mas que arriscam "um
vôo pássaro". Voam pela nossa mente, nos trazendo sinais de glória. Assim
é o patrimônio: casas antigas, praças, ruas, calçamentos, a cidade. Assim como
o sangue que nos é legado de geração em geração, o patrimônio nos fala de onde
viemos. E em suas fissuras e vielas, podem também evocar profecias e dizer para
onde vamos.
O patrimônio é identidade. A
história é a liga que nos consitui enquanto seres sociais, enquanto pessoa
inserida em um meio. Como diz o filósofo Ortega Y Gasset, "eu sou eu e
minhas circunstâncias".
"Mensageiro natural de
coisas naturais"
Os mitos da mineiridade falam
muito dessas tais "coisas naturais". Como na canção de Nelson Ângelo,
o mineiro tem "um gosto de fruta, um cheiro de mato, em meu (seu)
pensamento2".
Só o mensageiro natural pode
falar das coisas naturais. Os "falsos profetas", dos quais o
apocalipse já alerta, surgem a todo momento, e querem vestir as maiores
atrocidades como sendo coisas naturais. "A violência é natural",
brada um. "A pobreza é natural", vocifera outro. "Compre
isso", "você precisa daquilo", "faça desse jeito", dizem
os slogans publicitários.
A voz do vento, o reflexo das
águas, a direção das labaredas: nada disso quer te convencer de nada. É o que
é, é natural. São os genuínos mensageiros.
"Quando eu falava dessas cores mórbidas
Quando eu falava desses homens sórdidos
Quando eu falava desse temporal
Você não escutou"
Quando eu falava desses homens sórdidos
Quando eu falava desse temporal
Você não escutou"
Será que a sociedade vem ouvindo
esse chamado dos mensageiros naturais? O que foi feito depois das cores
mórbidas das enchentes, dos tsunamis, catástrofes naturais, dos buracos
na camada de ozônio, doenças do corpo e da mente? Quem são os homens sórdidos:
os que fazem a tragédia, ou os que a ignoram o temporal? Não podemos dizer que
não fomos avisados. É honesto admitir que nós não escutamos.
"Você não quis acreditar
Mas isso é tão normal"
Mas isso é tão normal"
Sim, é normal. O que é natural,
pode não parecer normal para os olhos já empaturrados de informação processada,
do excesso de dados culturais.
É preciso que seja dito o que, em
tese, é tão óbvio: o natural é tão normal.
"Cavaleiro marginal lavado em ribeirão
Cavaleiro negro que viveu mistérios
Cavaleiro e senhor de casa e árvores
Sem querer descanso nem dominical"
Cavaleiro negro que viveu mistérios
Cavaleiro e senhor de casa e árvores
Sem querer descanso nem dominical"
Seria um mito arturiano
ressurgido nas Minas? Um membro de távola redonda ou irmandade religiosa; um
Lancelot-tupiniquim-cristão-novo; lavado pela Senhora do Lago de Furnas;
banhado pelo Ribeirão do Eixo de Avalon; que viveu mistérios insondáveis nessa
Camelot-Gerais; configurado em senhor de engenho, casa e árvores; um
trabalhador honrado e incansável?
"Cavaleiro marginal banhado em ribeirão
Conheci as torres e os cemitérios
Conheci os homens e os seus velórios"
Conheci as torres e os cemitérios
Conheci os homens e os seus velórios"
Ou seria um Merlin; um demiurgo
mineiro; um Viramundo; um décimo-terceiro profeta sem nome; maltrapilho
errante; que em suas andanças através dos séculos pôde observar torres e
cemitérios; e a ascenção e queda dos homens?
"Quando olhava da janela lateral
Do quarto de dormir"
Do quarto de dormir"
Ao olhar da janela lateral, todos
podemos assumir esses mitos que existem dentro de nós, como diz Joseph
Campbell. Podemos ser os magos e guerreiros da nossa própria vida. Todos os
sinos, cemitérios e igrejas de todos os tempos e espaços do mundo vivem em nós,
em nossas moléculas, no pó de que viemos.
Não pergunte a ninguém por quem
os sinos dobram: a igreja que você observa da sua janela lateral pode lhe
responder.
*
Notas:
1 – CAMPBELL, Joseph. In:
KELEMAN, Stanley. Mito e Corpo: uma conversa com Joseph Campbell. São
Paulo: Summus, 2001.
2 – ÂNGELO, Nelson. JOYCE
(intérpretes). Um gosto de fruta. In: Nelson Ângelo & Joyce. Disco.
EMI Odeon: 1972.
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