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Foto: Paloma Parentoni |
Existem
tantas maneiras de se estar no mundo quantas forem as pessoas à habitá-lo. E
nossa diferença não vem apenas da cor dos olhos ou das impressões digitais. Não
vem de humanas miudezas. Acima das heranças, são nossas escolhas que mais dizem
sobre nós. Todo aquele que anda escreve a sua história com pegadas.
Mas,
em se tratando de humanos (essa espécie que adora se fazer de soberana nessa
terra), existem alguns pontos universais. A divisão de gênero, entre masculino
e feminino, é crucial ao se pensar sobre formas de estar-no-mundo. Muito mais
que distinções de corpos, as consequências simbólicas dos gêneros são imensas.
Do contrário, ninguém se chocaria com frases como a de Lacan, que décadas atrás
afirmou que "a mulher não existe".
Não
quero, aqui, discutir psicanálise ou quaisquer complexos dessa ordem (nem tenho
cabedal para tanto), mas vale a pena se deter um pouco sobre essa frase. Muitos
acreditam que é uma idéia misógina e preconceituosa em relação à mulher,
quando, de fato, penso que ela se refere a mulher como sendo uma espécie de
"falha" na matrix simbólica. Creio que, para Lacan, ela (a mulher)
escapa do universo simbólico, não é apreendida pelo lastro cultural assim como
o homem é. Falarei melhor disso adiante.
Isso
se daria por uma dialética básica; mas antes de entrar nesse assunto, é
necessário aprofundar o conceito de "falo". Certamente o falo não se
resume ao pênis do homem, mas sim a um símbolo de poder, que em narrativas
mitológicas se confunde, por exemplo, com espadas, armas, torres de castelos,
enfim, artefatos de poder. A bravura, a iniciativa, a postura de um guerreiro
ante os deveres da vida, são todas características tidas como "fálicas".
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Foto: Carla Evanovitch |
Na
verdade, é como se os códigos simbólicos não capturassem a peculiaridade da
mulher, e fossem uma espécie de idioma estrangeiro no universo feminino. Isso
porque cada mulher (e tento, da minha forma canhestra, pensar o que eu leio
nessa idéia da psicanálise lacaniana) é, em tese, única. Por isso ela é
inapreensível simbolicamente. Por isso, toda mulher ganha o dia ao ouvir seu
homem dizer que ela é insubstituível. Por isso, as meninas que fantasiam com
príncipes encantados, e elas enquanto princesas – a coroação e o reconhecimento
de serem únicas. Os homens, por sua vez, tem uma distinção aparente,
superficial. Em profundidade, o mesmo não se daria. Por isso a obsessão em ser
fálico, em ter um carro possante (e mostrar pra todos que seu som é alto), e
até mesmo exibir um corpo enorme todo esculpido em academias. É na superfície
do social que o homem se crê único.
A
identidade da mulher se distingue da do homem nesse ponto – cada mulher é única
naturalmente, enquanto homens o são simbolicamente. Entretanto,
se a mulher é única, mas inapreensível simbolicamente, então ela teria uma
espécie de "liberdade poética" entre os simbolos. Não há comprometimento
com um "eu-lírico", com uma voz rígida, assim como acontece com os
homens, que buscam por uma postura íntegra. A mulher é pura fluidez. Se ela tem
tantas peças em seu guarda-roupa, tantos sapatos e maquiagens, é porque ela
assume variadas maneiras de se representar socialmente. E a mulher não se perde
nessa brincadeira justamente por ser única. Diferente do homem, que marca seu
espaço através da rigidez fálica, do rigor de sua representação. Esse homem
precisa fazer isso porque, do contrário, se perderia no universo simbólico. Ele precisa ser fiel a seu papel. Os
papéis sociais, as representações, constituem sua identidade e sua voz.
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Foto: Paloma Parentoni |
Não
é a toa, penso eu, que "vida" é substantivo feminino. Ela escapa ao simbólico,
é inapreensível. Viver é como escrever, e, como bem disse Virgínia Woolf, os
escritores não se preocupam com escrever, mas sim com outras coisas[i].
Escrever, assim como viver, não é um fim em si, é atividade que aponta para
outro lugar.
Viver
imprevisivelmente é viver para além do simbólico, e assumir o imprevisível é
ver de outra forma. Etimologicamente, "imprevisível" que quer dizer
"não ver antes" (do latim, in: não; prae: antes; vedere:
ver); ou seja, não usar da razão para tentar antever as coisas. É abraçar o
imprevisível, viver com outra forma de ver: é devir.
Para
Deleuze, a maneira masculina de estar-no-mundo é dominadora, é uma forma de
expressão que tenta se impor a toda matéria. As mulheres, contudo, escapam da
sua própria formalização; apresentam o que ele chama de "componente de
fuga"[ii].
Mas surge a dúvida (racional): se esse estar-no-mundo da mulher é
indiscernível, em que solo simbólico pisam seus femininos pés?
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Foto: Carla Evanovitch |
Assim,
penso que o estar-no-mundo feminino tem algo de afeto, pois é justamente
essa dimensão afetuosa que serve como complemento à lógica racional. E o afeto
se manifesta na indiscernível área entre dois corpos, entre dois seres que se
encontram. Quando estamos com nossos amigos, não somos nem nós, e nem eles são
eles, mas todos se tornam o devir que paira sobre os afetos. As máscaras perdem
o sentido em todo encontro sincero, por causa do choque de "eus", que
afrouxam suas cercas e portais para se abrir ao outro, que por sua vez estão
também afrouxados e sacudidos.
2
- Escorregando a discussão para algumas atualidades
2.1.
"Macrontemporaneidades"
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Foto: Paloma Parentoni |
Muito
se falou também sobre a ausência de pautas dos protestos, e seu caráter, por
assim dizer, apartidário. Uma frase que me chamou a atenção em meio a tanto
"diz-me-diz" (e que agora não consigo rastrear a fonte. Transcrevo-a
de memória): "Quem acha que está entendendo os protestos, não entendeu
nada".
Por
isso, acredito nessas manifestações como sendo "massas de devir",
imbuídas de um caráter, dentre outras coisas, feminino – e digo isso nesse
sentido de escapar ao simbólico. E não só escapar, mas se posicionar contra o
arcabouço simbólico vigente. É outra perspectiva que se apresenta. As
instituições, as práticas sociais, as políticas públicas, nada disso foi
poupado. As depredações eram tão somente a materialização desse desejo de
romper com o que aí encontra.
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Foto: Carla Evanovitch |
Sinto
a movimentação feminina nesse viés. A razão, essa faca de dois gumes – que o
sistema tem usado mais para ferir os seres do que para desbravar novas
possibilidades – é enfim refutada. Ela tempera os protestos, mas não constitui
o prato principal.
2.2.
"Microntemporaneidades"
Saindo
da tônica dos protestos, concluo esse ensaio comentando sobre duas iniciativas
mais, digamos, localizadas, e que me chamaram bastante a atenção (foram elas,
aliás, a mola propulsora para que eu escrevesse tudo isso). São obras que
parecem assumir representações mais artísticas que políticas, ao propor novos
olhares para o mundo que nos cerca. Na verdade, elas afirmam o que Suely Rolnik
chama de "rigor ético, estético e político"[iv],
a um só tempo. Nos dois casos, afetos assumem formas outras, metafóricas. E,
claro, ambas foram idealizadas e são realizadas por mulheres.
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Foto: Paloma Parentoni |
Mais
que apenas exercitar afetos, a trajetória dos barquinhos incita a observação:
enquanto eles navegam (simbolicamente ou não) em busca de novos rumos, eles
ensinam, para além das palavras, o que é afeto e o que isso suscita em nós.
Observar a lânguida caminhada das frágeis embarcações são oportunidades
privilegiadas de refletirmos e vivenciarmos ternura, amizade, benevolência – em
suma, amor.
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Foto: Carla Evanovitch |
E
a matéria poética tem tudo a ver com a atividade do cultivo. Dentro do signo
"palavra", temos já a idéia de lavra – e a própria palavra
"signo", por sua vez, etimologicamente vem do grego
"semeión", que alude de alguma forma (se não no significado, pelo
menos na sonoridade) à atividade de semear[v].
Em ambas, o lúdico é uma possibilidade: ao ser perguntado sobre os motivos
pelos quais abandonou a literatura, o escritor Raduan Nassar teria dito que sua
vida se tornou "fazer, fazer, fazer, no âmbito da fazenda evidentemente,
num espaço em constante transformação, o que não deixa de ser uma outra forma
de escrever"[vi]. E ainda
mais explicitamente sobre o que o fez trocar uma atividade pela outra: "O
que há de lúdico numa atividade você transfere para outra com certa facilidade,
desde que você seja sujeito do seu trabalho"[vii].
3.
Conclusões?
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Foto: Paloma Parentoni |
Talvez
se possa dizer que essa dimensão afetuosa se encontra escassa (para não dizer
"inexistente") nas lógicas institucionais. Talvez por serem isso
mesmo, lógicas. Só me resta dizer que é sempre um encantamento ver mulheres
agindo de forma feminina nos ambientes institucionais. Num primeiro momento
histórico, a inserção das mulheres nesse outrora masculino e patriarcal mercado
de trabalho foi, mais que necessária, revigorante. Agora, o próximo passo
poderia ser o de construir canais para que essas características do feminino –
de afeto, acolhimento, delicadeza e tantas outras virtudes – possam ser
expressas de maneira mais ampla. Imaginem políticas públicas e ações
governamentais dessa natureza?
Termino
esse texto não com uma inconclusão (já as acumulei demais), mas com uma utopia
– a de vislumbrar ações políticas, sociais e culturais tão belas quanto um
barquinho de papel ou um jardim imaginado. Ah, utopias, suas belas ilógicas...
*
Ps:
eu acredito em sincronicidades, e recebi da amiga Elisa Gomes via facebook esse
vídeo abaixo, no exato momento em que colocava um ponto final nesse texto.
Podem acreditar. Aviso aos pessimistas: saibam que não vou me lamentar caso
queiram duvidar da coincidência que narro... fé é como opinião, cada um com
a(s) sua(s).
[i] WOOLF,
Virgínia. Apud: DELEUZE, Giles. A literatura e a vida. In: Crítica e Clínica.
São Paulo: Editora 34, 1997. Pág. 16.
[ii] DELEUZE,
Giles. A literatura e a vida. In: Crítica e Clínica. São Paulo: Editora
34, 1997. Pág. 11.
[iii]
BHABHA, Homi K. O
local da Cultura. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2005.
[iv] ROLNIK,
Suely. Pensamento, corpo e devir: uma perspectiva ético/estético/política no
trabalho acadêmico. In: Cadernos de Subjetividade. Dossiê: Linguagens. No
2. São Paulo: PUC-SP, 1993.
[v] SANTAELLA,
Lucia. O que é Semiótica. São Paulo: Editora Brasiliense, 1999. pág.
7-8.
[vi] NASSAR,
Raduan."Entrevista". In: Cadernos de Literatura, No
2. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1996. Pág. 39.
[vii] Op. cit.
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