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Cyro dos Anjos |
Amanuense
Belmiro é sua obra prima, mas Abdias
tem inúmeros méritos. E um dos que mais me impressionaram (apesar de ser
bem sutil, a princípio) foi o fato de Cyro, através de seu alter-ego Abdias,
fazer uma verdadeira profecia sobre o surgimento da bossa nova, movimento
musical que acabou por batizar e se compor como um gênero à parte.
O
romance data de 1945, enquanto que o tiro de largada para a bossa nova foi um
compacto com duas músicas de João Gilberto, lançado quase quinze anos depois, em
agosto de 1958. O que Cyro faz, dentro do romance, é uma breve análise do
samba, onde ele elenca pontos que o desagradam no estilo, enquanto vislumbra
possibilidades que cabem como uma luva no intinerário bossanovista.
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Vinicius, Tom e João Gilberto, década de 50 |
De
início, iria citar apenas o trecho específico sobre o samba. Mas decidi
reproduzir aqui a página quase integral, que de certa forma rodeia o tema, e
que demonstra bem a escrita fluida, saborosa e elegante do autor:
"Estávamos
numa segunda-feira de carnaval, e uma camioneta com alto-falante rodava pela
rua, derramando no ar sambas fanhosos, entre anúncios de pastas dentifrícias.
Chamei
a atenção do Dr. Azevedo para a invasão crescente do samba e condenei o apoio
que lhe davam alguns intelectuais. Prestigiando aquela manifestação primária da
criação musical e conferindo-lhe foros de cidade, influíam para que o povo cada
vez mais se distanciasse da boa música.
-
O rádio é talvez o maior responsável por isso, concordou.
E
contou-me, a propósito, que, para se ver livre de uma família de fanáticos
radio-ouvintes, que faziam o aparelho funcionar o dia inteiro, teve de comprar
a casa vizinha.
-
Como vê, eu, velho democrata, tive de procurar solução no espírito
latifundiário e imperialista da Glória. Mas não havia remédio. Quase me punham
doido. E quando ouviam irradiações de partidas de futebol? Estas são de
enlouquecer!...
O
assunto excitara-o. Continuou, animado:
-
Agora, não me apanham mais. Do contrato de locação faço sempre constar uma
cláusula segundo a qual o locatário não pode utilizar-se do rádio senão umas
duas horas por dia. E são sempre as horas em que não estou em casa.
Voltando
à questão do samba, disse, depois, que talvez estivéssemos exagerando o mal que
decorria de sua incrementação, através da atividade radiofônica. Quem sabe
essa música elementar não seria preparatória de formas musicais superiores, no
futuro? À semelhança do que já faziam alguns compositores brasileiros da
atualidade, outros talvez viessem, mais tarde, extrair da ganga pobre do samba
temas para concepções mais ricas..."
De
fato, João, Tom e Vinicius o fariam. Mas a bola já tinha sido cantada antes,
obscuramente, no rodapé desse belo romance do mineiro de Montes Claros.
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